sábado, 30 de outubro de 2010

Canção Amiga (Carlos Drummond de Andrade)


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Buraco sem fundo (marcela maria)

Cavei com os próprios dedos
O buraco sem fundo do consumismo.
Número por número.
Tecla por tecla.
Até onde chegarei?

Serei cega até quando?
Até chegar um novo modelo?
Minimizei uma atitude
Simetricamente possível
Unicamente paliativa
Nunca antes experimentada
Gozo de solidão, talvez.

Liberdade de expressão
Grevemente ferida.
Digo não à tecnologia!
E mais uma vez vencida,
Encontro-me rendida
Na tela do mundo,
Cyber mundo!

Remix Século XX (Adriana Calcanhotto/Waly Salomão)

Armar um tabuleiro de palavras-souvenirs.
Apanhe e leve algumas palavras como souvenirs.
Faça você mesmo seu microtabuleiro enquanto jogo linguístico.

Babilaque
Pop
Chinfra
Tropicália
Parangolé
Beatnick
Vietcong
Bolchevique
Technicolor
Biquíni
Pagode
Axé
Mambo
Rádio
Cibernética
CELULAR
Automóvel
Buceta
Favela
Lisérgico
Maconha
Ninfeta
Megafone
Microfone
Clone
Sonar
Sputinik
Dada

Sagarana
Estéreo
Subdesenvolvimento
Existencialismo
Fórmica
Arroba
Antivirus
Motosserra
Mega, sena

Cubofuturismo
Biopirataria
Dodecafônico
Polifônico
Naviloca
Polivox,
Polivox,
Polivox,
Polivox...

Traduzir-se (Ferreira Gullar)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte
será arte?
.
Ferreira Gullar

Se eu morresse amanhã (Álvares de Azevedo)

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã,
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda ti natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!